MPF entra com ações contra responsáveis por pesquisa irregular com medicamento experimental no RS

O caso ocorreu no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre e no Hospital Arcanjo São Miguel, em Gramado, em março de 2021

O MPF (Ministério Público Federal) ajuizou duas ações civis públicas em que pede reparação por dano potencial à saúde e dano moral coletivo aos responsáveis por um estudo tido como irregular com o medicamento experimental proxalutamida para o tratamento da covid-19. O caso ocorreu no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre e no Hospital Arcanjo São Miguel, em Gramado, em março de 2021.

As ações, movidas contra a União (representando a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, órgão do Ministério da Saúde) e os pesquisadores Flávio Adsuara Cadegiani e Ricardo Ariel Zimerman, tiveram origem em um inquérito civil instaurado na Procuradoria da República no Rio Grande do Sul e na Procuradoria da República no Município de Caxias do Sul, a partir de representação da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa).

A primeira ação ainda tem como réus o Estado do Rio Grande do Sul e o ex-diretor do Departamento de Saúde da Brigada Militar Igor Wolwacz Júnior. A segunda aponta também como corresponsáveis o município de Gramado, Márcio Rafael Slaviero e Márcio Pinto Muller, respectivamente superintendente e diretor técnico do Hospital Arcanjo São Miguel. Se condenados, os réus poderão ter de pagar multa em valor não inferior a R$ 10 milhões em cada uma das ações.

Transgressões à ética da pesquisa

O inquérito trazia indícios de transgressões das normas vigentes sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos na condução do estudo “Proxalutamida para pacientes hospitalizados por COVID-19. The Proxa-Rescue AndroCoV trial”, conduzido pelo médico Flávio Cadegiani. O objetivo do estudo seria avaliar a eficácia e segurança do medicamento proxalutamida no combate à covid-19.

Em fevereiro de 2021, mesmo sem autorização dos órgãos competentes, 63 pacientes do Hospital Arcanjo São Miguel completaram o tratamento com o uso de proxalutamida. Depois, em março, também sem qualquer autorização dos órgãos competentes, 62 pacientes do Hospital da Brigada Militar completaram o tratamento com o uso de proxalutamida, sob responsabilidade do médico Ricardo Ariel Zimerman.

Além desses dois hospitais, instituições de saúde de outras regiões do país, como em Manaus (AM) e Chapecó (SC), foram utilizadas no estudo, embora não fossem autorizadas. Ao todo, a pesquisa contou com 778 participantes, ainda que o projeto inicial aprovado pela Conep prevesse apenas 294 pacientes.

O estudo também foi investigado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Após as denúncias, a agência decidiu pela suspensão cautelar, em todo o território nacional, da importação e do uso de produtos contendo a substância proxalutamida para fins de pesquisa científica, a partir de 1º de setembro de 2021.

Óbitos durante a pesquisa

Sobre os óbitos ocorridos durante a pesquisa, os pesquisadores classificaram como não relacionados à droga de intervenção. Porém, esse entendimento não é sustentado por qualquer análise crítica ou informações sobre os critérios adotados para que se chegasse a essa conclusão. Segundo o MPF, tal fato “torna inverossímil descartar a possibilidade de morte provocada por toxicidade medicamentosa ou por procedimentos da pesquisa”, afirmam.

Ainda, o número de óbitos somente foi informado à Conep após solicitação do órgão, contrariando dispositivo do CNS (Conselho Nacional de Saúde). O Conselho afirma ser obrigação do pesquisador responsável comunicar as mortes imediatamente, seguido de avaliação sobre a necessidade de adequar ou suspender o estudo. Ou seja, o pesquisador continuou o recrutamento e o andamento da pesquisa mesmo com as sucessivas mortes.

Outras irregularidades

No decorrer das investigações do MPF, outras irregularidades foram constatadas, como a utilização pelos pesquisadores de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) diferente do aprovado pelo órgão regulador. Trechos que garantiam os direitos dos participantes da pesquisa, como indenização e assistência em caso de danos, ressarcimento de gastos e fornecimento de métodos contraceptivos foram subtraídos.

Entre as demais irregularidades apontadas durante a execução do estudo estão: falta de controle sobre a dispensação e rastreabilidade do medicamento estudado e do placebo; não apresentação de documentos sobre o curso e a condução do ensaio clínico; não acompanhamento da pesquisa realizada no Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre ou no Hospital Arcanjo São MIguel, em Gramado, por um CEP (Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos); uso da proxalutamida por pacientes após a alta hospitalar, em violação ao termos aprovados pela Conep.

Mesmo a Conep tendo suspendido o estudo e representado ao Ministério Público Federal, os procuradores que assinaram as ações civis públicas incluíram a União, da qual a Comissão faz parte, no polo passivo da ação. Foi considerado que o órgão falhou tanto na apreciação ética do protocolo de pesquisa, o que resultou na autorização inicial do estudo, quanto em seu acompanhamento.

A proxalutamida

A proxalutamida é um medicamento experimental utilizado em pacientes com alguns tipos de câncer, como o de próstata. Ele é um antiandrogênico que pode causar malformação no feto, sendo contraindicado o uso durante a gravidez. Além disso, o medicamento não foi aprovado por nenhuma agência regulatória do mundo.