Trabalhadores de frigoríficos são mais suscetíveis à Covid-19, aponta MPT

No Rio Grande do Sul, 27 plantas frigoríficas registram casos confirmados de coronavírus, conforme dados mais recentes do MPT-RS.

Ambiente úmido e gelado, temperatura na casa dos 10ºC. Aglomeração de pessoas trabalhando, literalmente, ombro a ombro, em uma disposição tanto lateral quanto frontal. Esse tipo de local de trabalho retrata, principalmente, as linhas de produção de frigoríficos especializados em abate de aves – no caso dos de bovinos e suínos, há um espaçamento um pouco maior. Além disso, os trabalhadores vão almoçar, bem como utilizam vestiários, ao mesmo tempo. Eles são oriundos de diversos municípios no entorno das plantas industriais e trazidos de suas casas e depois levados de volta em um mesmo ônibus. Soma-se a isso a falta de renovação de ar nesses ambientes gelados, imposta pela necessidade de se manter a qualidade dos produtos.

A não-renovação do ar em frigoríficos é um componente básico para surtos e propagação de coronavírus, relata a procuradora Priscila Schvarcz, gerente nacional adjunta do Projeto de Adequação das Condições de Trabalho nos Frigoríficos do MPT (Ministério Público do Trabalho). “É uma verdadeira bomba-relógio”, destaca.

A estruturação do trabalho nesse setor é muito significativa, reconhece a médica veterinária formada pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Larissa de Borba Espíndula, responsável técnica em indústrias frigoríficas no Estado. “Por isso, a maioria dos casos de surto de Covid-19 [coronavírus] ocorreram em frigoríficos que trabalham com aves e quase nenhum ligado a bovinos”, avalia.

No Rio Grande do Sul, 27 plantas frigoríficas registram casos confirmados de coronavírus, conforme dados mais recentes do MPT-RS. Até o começo de junho, o segmento registrava três óbitos pela doença. No total, 52% dos surtos de coronavírus no Estado são decorrentes de frigoríficos.

“Em uma empresa, por exemplo, dos 1,3 mil funcionários, 959 testaram positivo para o novo coronavírus”, informa a procuradora. Ela pontua que, como a maioria das pessoas são assintomáticas, elas continuam trabalhando e transmitindo o vírus. “Por isso, para conter a pandemia, é tão importante isolar todos esses trabalhadores e não só os que apresentam sintomas.”

Demitidos ao invés de afastados

Priscila revela que há casos gravíssimos no país, de “verdadeiros crimes” contra o trabalhador. “Em uma empresa, no município de Seara, em Santa Catarina, 40 indígenas foram demitidos de um dia para o outro, sendo uma grávida. Essas pessoas levavam duas horas e meia de condução para irem até a fábrica e para voltarem. E eles simplesmente demitiram para não ter que gastar com mais um ônibus para o transporte desse grupo, mesmo havendo uma portaria do Governo de SC que classifica indígenas como ‘grupo de risco’, ou seja, deveriam ter sido afastados, não demitidos”, aponta a procuradora. O caso referido foi julgado pela Justiça catarinense na última quarta-feira (3). Foi determinada a reintegração desses funcionários e o devido afastamento das atividades.

Em outro caso, 214 trabalhadores foram diagnosticados com síndrome gripal, mas a empresa “se nega a testar” para Covid-19 esses operários. Destes, dois foram hospitalizados com coronavírus. Uma pessoa que não é funcionária, mas teve contato com um desses doentes, também foi internada.

A procuradora, no entanto, entende esse embate como pontual. Salienta que o MPT já firmou 78 TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) com empresas no País inteiro, destacando BRF S.A, Marfrig Global Foods e Aurora Alimentos S.A. A ação protegeu 170 mil trabalhadores e, conforme a procuradora, a maioria das indústrias está vendo a necessidade de se adequar. “A única resistência é da JBS”, relata. Para Priscila, a marca insiste em um protocolo que não é bom o suficiente ou não é implementado. “Há um hiato entre as fotografias que a empresa manda e a realidade nas unidades”, avalia.

Segundo Priscila, com a paralisação de indústrias internacionais em razão da pandemia e o aumento do dólar, o setor, no Brasil, ficou em posição confortável em relação a outros segmentos da economia e pode investir mais em recursos de segurança. “Não há crise econômica para o setor frigorífico”, conclui.

Risco de doenças

O problema é registrado não só no Brasil, mas também em empresas no mundo todo. E as indústrias de proteína animal são suscetíveis não apenas ao coronavírus, mas a diversas zoonoses. Nesse sentido, a Fair Initiative – fundação inglesa mantida pela Jeremy Coller Foundation – divulgou, no dia 3 de junho, um estudo intitulado “Um setor Infectado”. A pesquisa analisa essa problemática em 60 grandes companhias. 44 empresas foram consideradas de alto risco pandêmico, já as outras 16, classificadas como risco médio. Conforme o estudo alerta, o setor deve adotar rígidos protocolos de biossegurança.

Larissa sustenta que se trata de um problema de difícil resolução porque as empresas não podem parar. “As perdas são enormes.” Ela explica que as plantas mantêm geralmente mais de mil trabalhadores e abatem, no caso das indústrias de aves, mais de 200, 400 mil animais por dia. “A linha de produção é muito cronometrada. Esses animais são selecionados geneticamente para durarem até o período do abate e, se passam desse tempo, eles começam a morrer”, diz Larissa. Segundo ela, isso fica gerando mais prejuízos ao segmento.

Documentário

Além dos quadros de doenças respiratórias, os trabalhadores de frigoríficos sofrem mais em relação a outras categorias. Em um documentário realizado em 2011, “Carne e Osso”, dirigido por Caio Cavechini, fontes do Ministério Público do Trabalho ressaltavam que esses operários sofriam três vezes mais traumatismos de ombro, braço e abdômen do que os de outros ramos. Queimaduras e corrosões, seis vezes mais. Ou seja, 596% de excesso de risco na comparação com outros segmentos (no caso, abate de bovinos). Risco de lesões no punho somavam, à época, 743% mais risco.

Esses funcionários realizam, em média, 18 movimentos em 15 segundos para desossar uma perna de frango (coxa e sobre-coxa). E é normal que esses trabalhadores realizem de 80 a 120 movimentos repetitivos por minuto, o que é três vezes mais do que o limite seguro (estudos médicos apontam 35 movimentos por minuto como limite considerado saudável).

Outro ponto que chama atenção é o quadro por doenças mentais. Quando, na população em geral, aproximadamente, 209 pessoas a cada 100 mil desenvolverão transtornos mentais, no segmento de abate de aves e suínos, esse número salta para 712 a cada 100 mil. 3,41% a mais do que nos demais segmentos econômicos.

O MPT informa que iniciou, em 2010, o Projeto de Adequação do Meio Ambiente do Trabalho em Frigoríficos. De lá para cá, já foram firmados acordos com todas as grandes empresas do setor para assegurar pausas de recuperação térmica e de fadiga – 10 minutos a cada 50 minutos ou de 20 minutos a cada 1h40min de trabalho. Esses intervalos, conforme o MPT, reduziram de forma substancial os adoecimentos nos frigoríficos e o número de ações trabalhistas individuais e coletivas, beneficiando cerca de 500 mil trabalhadores do setor.

A partir de 2015, o projeto firmou acordos com as empresas BRF S.A, JBS S.A, Aurora e dezenas de outras, visando a adequação do ritmo de trabalho – um dos fatores de maior risco em frigoríficos. Os acordos, além de beneficiaram os trabalhadores do setor, são implementados progressivamente e sem sobressaltos.

Os acordos sobre prevenção à Covid-19, pausas e de adequação do ritmo, além de protegerem a saúde dos trabalhadores, também agradam às empresas, pois o amplo debate sobre cada uma das cláusulas, em audiências profícuas e técnicas – que muitas vezes chegam a durar mais de 10 horas -, estabelece com clareza e certeza o cumprimento das decisões.

Apesar da pandemia, setor registra crescimento

Dados da ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal) mostram que, no acumulado de 2020, de janeiro a maio, as exportações de carne suína chegaram a 383,2 mil toneladas, volume 34% acima do efetivado nos cinco primeiros meses de 2019. Já em receita, o saldo foi 54,8% maior, com US$ 878,3 milhões neste ano, contra US$ 567,5 milhões no anterior.

Em relação às exportações totais de carne de frango, no acumulado de 2020, o volume exportado chega a 1,764 milhão de toneladas, volume 4,9% acima do efetivado entre janeiro e maio de 2019, com 1,681 milhão. A receita neste ano já chegou a US$ 2,697 bilhões, número 3,7% menor em relação ao desempenho registrado no mesmo período comparativo.

Segundo dados da Secex (Secretaria de Comércio Exterior), em maio, o Brasil embarcou 155,13 mil toneladas de carne bovina in natura, recorde para o mês. A média diária ficou em 7,76 mil toneladas, o que representa um incremento de 37,2% na comparação com 2019. A receita do mês ficou em US$ 682,64 milhões, 41,5% maior que a do ano anterior.

Dados da Associação Brasileira de Frigoríficos também mostram que não há crise no setor por causa do novo coronavírus. No acumulado dos quatro primeiros meses deste ano, as exportações do setor tiveram alta de 1% em volume e 19% em faturamento, em comparação com o mesmo período de 2019. A receita acumulada chega a US$ 2,4 bilhões.

Posicionamento da JBS

A assessoria da JBS encaminhou o seguinte posicionamento sobre a citação anterior:

A JBS não comenta processos judiciais em andamento. A empresa reitera que tem como objetivo prioritário a saúde de seus colaboradores e ressalta que desde o início da pandemia tem adotado um rígido protocolo de prevenção contra a Covid-19 na sua unidade de Ana Rech (RS) e em todas as suas plantas no Brasil, conforme as orientações dos órgãos de saúde e protocolo do Ministério da Saúde, Economia e Agricultura. A JBS também segue as orientações do Hospital Albert Einstein e especialistas médicos contratados pela Companhia para apoiar na implantação rigorosa de medidas para a proteção de seus colaboradores.

Entre as ações adotadas pela Companhia, estão:
– afastamento de pessoas que fazem parte do grupo de risco como maiores de 60 anos, gestantes e todos os que tiveram recomendação médica;
– ampliação da frota de transporte;
– desinfecção diária das unidades;
– medição de temperatura de todos antes do acesso às fábricas;
– vacinação contra gripe H1N1 para 100% dos colaboradores;
– ações de distanciamento social;
– forte comunicação de prevenção e cuidados, entre outras.“

Segundo a assessoria, as medidas de saúde e segurança adotadas pela JBS estão disponíveis no site da empresa.


Reportagem: Fabiane Morais
Colaboração: Letícia Castro
Revisão: Vitor de Arruda Pereira e Lorenzo Mello

Edição final: Leonardo Severo